sexta-feira, 12 de outubro de 2007

O Xodó da Rua 27

Todo dia eu acordava cedinho, ao pé do sol raiar, e postava-me a janela, encostando a cara no vidro e pressionando-a, a fim de ver o xodó descer as escadarias do sobrado localizado na Rua 27, e aparecer à calçada com sua saia rodada e esvoaçante.

Naquela manhã de quarta-feira, não seria diferente. A bela moça desceu as escadas visíveis segurando as bordas laterais da saia rodada de poá.

Os cabelos cacheados e impecavelmente limpos permaneciam intactos, apesar da forma traiçoeira como ventava. O único nela que insistia em esvoaçar era a saia, e eu agradecia mentalmente por isso.

Seus lábios exibiam uma cor carmim estonteante, e eu deitava-me a noite e levantava-me a manhã sonhando com o toque aveludado deles sobre os meus, secos e ríspidos.

Eu vi seu corpo mediano e atraente, levemente dançante, dobrar a esquina e sumir do quarteirão, deixando a Rua 27 escura e sem sentido, sem brilho algum.

Ao contrário do que deve pensar, ela não era do tipo que todos os marmanjos paravam pra olhar. Ela era aquela que admirava a mim, com seu jeito especial e único de ser.

Não era educada com homens, possuía aquele ar autoritário grosseiro, e a pose de mulher inabalável. Uma feminista estridente. E talvez esse fosse um dos fatos que me levavam a cair de amores por ela, ao amanhecer, e ao anoitecer. Tanto nos sonhos noturnos, quanto aos matinais. Sempre. Sem exceção.

O único que não conhecia dela eram seus olhos, pois nunca falara com ela civilizadamente, e ela tinha a mania de estreitá-los, impossibilitando-me a visão.

Era sequer uma mulher misteriosa. Ela tinha aparência adolescente, mas eu sabia que sua casa de idade percorria os vinte e oito, trinta anos.

Carregava sempre uma bolsa salmão escura, pequenina, de mão. Sempre. Pergunto-me o que de valioso havia nela. Intrigante o bastante pra se deduzir.

Eu livrei-me de meus devaneios ao ouvir a voz da dona da pensão – é, vivia numa – gritar, chamando-me para tomar o café da manhã antes que ela lavasse a louça.

As minhas manhãs eram todas iguais, impecavelmente iguais. Uma rotina inquebrável. Doce rotina, doce rotina.

A geléia de morangos matinal lembrava-me a boca dela, e o macarrão do meio-dia, seus cabelos. À noite, entre a xícara de café, cuja qual eu mexia com a colher, vinha-me a imagem de seus olhos. Seus olhos misteriosos e impassíveis. Os quais não tinha mínima intuição de que conheceria.

Nenhum comentário:

Postar um comentário